quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Excursão da babaquice: em busca do silêncio


(Artigo de 1994 escrito enquanto eu xingava os atores do que será narrado abaixo) Foto Mycteria americana (Cabeça Seca) WikiMedia

Por Jackson Lima

Estou sentado numa cadeira confortável. A um metro e meio de mim, um filhote de cabeça-seca (um pássaro grande, desengonçado, de cor cinza, branca e preta, com um bico dominante) brinca com uma vara de pescar. O anzol está ligeiramente enganchado na parte interna do bico dele. A dez metros do cabeça-seca, uma garça-branca observa o rio Miranda, quase em sua reta final da viagem para o (rio) Paraguai. Os dois pássaros, ambos da família da cegonha – são órfãos. São criados pelo pessoal da pousada, aberta recentemente para atender os pescadores desse Brasilzão.

Nem a garça, nem o cabeça-seca pescam mais Os dois preferem (ou só sabem) ficar ao lado dos pescadores que, de vez em quando, dão-lhes um peixe de caridade. Os dois aprenderam que podem ganhar peixe e de graça. A garça até tenta. O cabeça-seca, não. Este último vive agora como “dependente’ de uma espécie de previdência social. Pode-se dizer que o filhotão – ele ainda é um filhote – está praticamente aposentado por invalidez. No pé direito dele, há um caroço grande que lembra um caramujo bem dotado e que ele tristemente carrega para onde vai. Já tentaram tirar o caroço. Já o cortaram e retiraram um líquido. Os empregados do estabelecimento dizem que o filhotão pulava do poleiro tantas vezes quantas o pusessem lá ou quantas vezes lhe desse vontade durante a noite. Por causa desse saltos – acreditam – ele ganhou o caroço, uma espécie de inchação do tendão. É o que me disseram.

É uma pássaro triste. Cochila às 11 horas do dia e quando se acorda caminha ao longo da margem do rio, as asas recolhidas. É nesses passeios que ele se mete em encrencas como aquela em que ele se fisgou com o anzol deixado na margem por um pescador que veio buscar uma cerveja no bar da pousada. A vista de um grande pássaro fisgado assustou a paulista Vitória Campesi, nativa da Vila Mariana.

– Ai meu Deus, o Pelé, engoliu um anzol! Qu’é qu’eu faço moço?
– Sei lá, respondeu o marido pescador intrometendo-se na pergunta feita a um terceiro. 

– Faz, alguma coisa amor, você é pescador – implora Vitória com um sotaque paulistano-humanista. Xingando, o marido esclarece que liberar pássaros estúpidos de iscas e anzóis não é parte do treinamento de um pescador.

Um senhor desconhecido, todo mundo é desconhecido às margens do rio de uma pousada, assegurou a Vitória que isso acontece e aumentou o desespero dela compartilhando uma experiência sua.

– Eu já vi um gato fisgado no Solimões. Contou que em um povoado do rio Solimões, um morador do beiradão tinha um gato muito ladrão. O gato meteu-se no meio das tralhas dos pescadores, seguindo o cheiro de peixe, e se fisgou.

Enquanto os visitantes intercambiavam informações, o cabeça-seca se livrou do anzol. Vivendo vidas ainda dignas mas ainda assim, artisticamente se escorando em terceiros, oito biguás, pássaros da laia do pelicano não arredavam pé ou asas da frente do hotel- pelo menos não enquanto há um pescador, pelo menos, à vista. Eles voam, mergulham, são livres mas quando é possível esperam o gesto de um nobre pescador. Um pescador capixaba, jogou uma sardinha fluvial no ar, o peixe caiu na água e afundou. O biguá mergulhou em seguida, sumiu, e voltou à tona com o peixe no bico. Os turistas aplaudiram quando em duas pescoçadas o peixe sumiu goela abaixo.

A calma volta à beira do rio. O cabeça-seca, cansado decide tirar uma soneca. A garça fez um vôo e por uns minutos parece livre, ganha altura brincando com um vento quente que sopra de baixo pra cima elevando o que encontra no caminho. O vento quente vem de Cuiabá. É bom e querido. A garça faz uma pequena manobra para se livrar de um carcará que voa em sua direção, lutando para ganhar altura, talvez na esperança de que um saco plástico duro, daqueles que protege bagagens e caixas de cerveja, se desprenda de um seus pés. No chão, os incansáveis empregados da pousada trazem, no colo, dois filhotes de capivara. Uma assistente, os segue, duas mamadeiras em mãos. A assistente solta um gritinho:

– Hora de mamar. Os filhotes já tem nome cristãos: Xuxa e Xitãozinho. Vitória, já recomposta do susto do pássaro fisgado, se oferece para amamentar os dois animalzinhos. Ela amamenta o filhote número um. A assistente alimenta o número dois. Os olhinhos deles lacrimejam ao passo que a barriga se enche de leite de vaca. Vitória diz que são lindos. Parecem crianças!

– O que aconteceu com o mãe deles? Eles ser irmãos? Perguntou Karl, alemão de Munique que estava na Pousada, há quanto tempo, não sei. O ambiente gelou. Houve um corre-corre. Vitória – a humanista não podia ouvir coisas tristes. Dez teorias apareceram em dez segundos. Vitória ficou rígida. Dura. De seus olhos castanhos, mas para o âmbar do que para o castanho, fluíram, cascatearam lágrimas ecológicas.

– Não vão dizer que a mãe deles morreu?
Um dos empregados deixou transparecer que e afirmou que o roedor existe aos milhões. Vitória apertou o filhotinho um pouco mais.

– Isso é praga! Dá como rato! As férias pantaneiras de Vitória quase foram para o beleléu. Mas um novo barco que aportava no cais flutuante, mudou as coisas.

– Turistas! Resmungou Karl.
O barco trouxe turistas para almoçar na natureza. Um dúzia de crianças desembarcaram. Junto com pais, mães. Os filhotes de capivara não tiveram tempo de arrotar. O Pelé – saiu mancando carregando seu caramujo cármico.

– Quero Coca! Sorvete! Cerveja! Tem pipoca, para os passarinhos?
A pousada ligou os geradores. O po-po-pó dos motores lembrava o capeta em pessoa fazendo pipoca cósmica para alimentar monstrengos interplanetários. A eletricidade começou a jorrar pelos fios. Se acordaram os ares-condicionados. Se despertaram os freezers. A antena via satélite assumiu seu papel de captar sinais e um televisor, no restaurante, vomitou a primeira de muitas notícias. SEQÜESTRO NO RIO, anunciou a voz culta, engraxada do locutor, apresentador.

Karl pediu uma caipirinha! Um chiado rouco fez prever que mais uma máquina estava para se levantar e dar sua contribuição à animação. Era o Sound System da Samsung. Palavras e melodias saíam pelos auto-falantes cantadas por pessoas de carne e osso de comunidades locais como Londres, Nova York e até Nápoles.

What is in your head? What is in your had? Down there! Downthere! Insistia uma cantora com voz de menina, provavelmente nativa de algum lugar da Inglaterra. Os brasileiros que vieram no barco, cercavam a um inglês interessado em Brasil: o que essa música quer dizer?

– É lixo! O que você tem na cabeça?
– Eu?
– Não, é o que diz a música!

O cabeça-seca, os biguás-joão-sem-braço, a garça sumiram.
– Porca Miséria! Que música! Reclamou um italiano nativo de Milão que não se sensibilizou com a música “italiana” que a pousada colocou no Sound System, em sua honra: O Sole Mio!
– Per me, O Sole Mio é uma musica estrangeira, africana! Io pensavo escutar musica della Natura. Ele, Giacomo era o nome, dispensou o almoço e alugou um barco de alumínio com um motor 40 para ir em busca de silêncio. As máquinas de lavar roupa entraram em ação assim que o motor dos barcos dos italianos arrancou ruidosamente em busca do silêncio.

– Aqui se lava muita roupa. Muita toalha de mesa! Disse uma lavadeira.
– Por que lavar toalha de mesa. Porque não usa toalha de plástico? – rebateu uma turistas brasileira desgostosa e meio ecologista.

– O patrão não gosta! Disse a empregada.
– Foda-se o patrão! A Natureza gosta! Retrucou a ecologista.
Depois do almoço, o grupo foi embora. Paz? Não. Chegou outro grupo para pernoitar. Estudantes de São Paulo e Campo Grande.

O barulho à noite veio com força maior. Os jovens queriam dançar. A maioria queria também ver o jogo Ájax – Grêmio no Japão. Outros queriam beber. Alguns queriam escutar a Natureza.

– O barulho das máquinas também é natureza, não é? É Vitória. Ela já tinha tomado uma caipirinha a mais.

Não muito longe dali o Pantanal real existia: calor, frio, mosquito, pássaros,animais – todos pagando um preço pela vida. Amanhã todos se vão. Para trás ficarão o cabeça-seca-da-previdencia, a garça, as capivarinhas, os funcionários. Ficarão enquanto der. Logo uns morrerão. O caramujo poderá virar um jabuti. Por último morre o hotel. O turismo vai procurar outros lugares.

E a Vitória descobriu que a mãe das capivarinhas órfãs foi ferida em um acidente e, como já estava morta, foi comida na pousada. Karl almadiçoou o seu compatriota chamado Diesel – inventor do óleo que anima todas as máquinas do Pantanal. O italiano vai propor ações que garantam que nunca mais na vida um milanês seja homenageado com O Sole Mio. O marido de Vitória, disse que ela é sensível demais e não vai pescar no Vale do Guaporé no ano que vem! E assim todo mundo volta querendo saber para onde foi o Pantanal durante aquela semana de fevereiro de 1994!