segunda-feira, 23 de agosto de 2010

De bicicleta à Morraria do Sul (IV) Os Cadivéus ou Kadiwéus (II)

Mais sobre os Kadiwéu (Parte II)

Do alto da serra da Bodoquena olhando para a direção dos Campos dos Índios se pode ver vários núcleos de habitação. Algumas casas isoladas aqui e lá – isso coma ajuda de um bom par de binóculos. São sedes de fazendas. Os Kadiwéus arrendam terras para fazendeiros brancos. Na data em que escrevo este relato há 104 propriedades brancas lá dentro que criam um total de 60 mil cabeças de gado. Segundo notícias que levantei em Campo Grande – a cidade morena – e em jornais do Estado do Mato Grosso do Sul, os Kadiwéus recebiam R$ 150 mil por semestre pelo arrendamento das terras. Na época, Kadiwéus e fazendeiros travavam uma guerra com a FUNAI. O arrendamento de terras indígenas para não-índios é inconstitucional segundo a Constituição Brasileira de 1988. Como as coisas estão, o Ministério Público esta para entrar com pedido de despejo dos fazendeiros e seu gado a qualquer momento. É um problema sério. Para tentar resolver o impasse, índios e fazendeiros já tiveram inúmeras reuniões em Campo Grande.

As duas partes chegaram a um acordo para evitar que o Poder Público passe a expulsar o gado das terras indígenas . A palavra que escolheram é a mesma utilizada hoje no Rio de Janeiro, São Paulo, Nova York e Paris: parceria. Kadiwéus e fazendeiros aceitam uma parceria por meio de suas organizações de classe respectivas. O fazendeiro branco entregaria o gado aos kadiwéus e sairiam das terras. Os Kadiwéus criariam o gado e receberiam 30% do valor do gado comercializado. O fazendeiro ficaria com 70% da operação.

A Associação dos Criadores do Vale do Aquidaban e Nabilqeue (ACRIVAN) é a organização branca aceita. A Associação das Comuidades Idígenas Kadiwéu (ACIK) também. Mas a coisa emperrou do lado da FUNAI. A saída é vista por todos os lados . Há grandes esperanças que a situação seja normalizada ainda em 1996.


A relação Kadiwéu com gado e cavalos tem o reconhecimento histórico dos portugueses e dos espanhóis e, mais tarde, do Brasil e do Paraguai. A partir do século XVI espanhóis e portugueses começaram a trilhar a Planície Pantaneira. Eles procuravam o caminho mais fácil para as montanhas de prata do Peru. Desde esse momento, os guaicurus nome genérico com o qual os kadiwéus ou guaicurus passaram à historia, fizeram guerra aos dois grupos. Foi um desfile de gente. Espanhóis, portugueses, monções paulistas (bandeiras fluviais), paraguaios, jesuítas e brasileiros. Aleixo Garcia foi provavelmente a primeira vítima da guerra decretada pelos guaicurús e seus aliados os paiaguás. Toda a expedição teria morrido em local que aponta para a Boca do Rio Mbotetei – hoje rio Miranda.

Os guaicurús eram ótimos no manejo do cavalo. “Índio e cavalo formavam uma única criatura. Completavam-se, entendiam-se e até conversavam num código de assovios que o homem inventara e o animal logo aprendera”, escreveu M. Cavalcanti Proença, historiador. Antes do cavalo, o Kadiwéu ou guaicuru era caçador, coletador de frutos. Após o cavalo, passou a ser pastor e criador de gado nas planícies do Nabileque. Os registros informam que o primeiro roubo de cavalo praticado pelos Kadiwéus contra os europeus aconteceu em 1672. O cavalo foi uma poderosa ferramenta nas mãos kadiwèus. Eles o utilizavam na defesa, na vigilância e no reconhecimento de seu território. Sobre a habilidade deles com os cavalos escreveu o jesuíta espanhol José Sanchez Labrador: “ ... em seus cavalos não gastam selas ... montam em pelo e para isso de um salto estão em cima deles”. Com o cavalo em mãos, o próximo passo foi passar para a aquisição de gado bovino. A tribo ficara mais forte sob esse novo status. “Como criadores de gado os Kadiweus tinham mais tempo para pensar em política e realizar façanhas” - escreveu Herbert Baldus na introdução do livro de Boggiani.


Entre as façanhas estavam mais guerras contra os inimigos. Quem quer que falasse espanhol, português ou guarani eram inimigos. Enquanto crescia o rebanho de equinos, aumentava também o número de bovinos. Uma verdadeira criação. Ricardo Franco de Almeida Serra, o terceiro comandante do Forte Coimbra, mencionou em relatório enviado a Cuiabá que o número de cavalos sob o poder dos Guaicurús passariam de oito mil.

Outras façanhas dos Kadiwéus incluíam a invasão de aldeias e assentamentos vizinhos de outras etnias. Delas roubavam crianças, mulheres e prisioneiros que eram levados como escravos. Esses pertenciam aos povos guaná, bororó, chiquito, caiapó, caiuaba e entre eles alguns negros e até espanhóis. Todos os autores se apressam em dizer que os escravos dos Kadiwéus não sofriam. Afirmam que os Kadiwéus não levantavam a voz contra os escravos e nem assumiam uma posição de comando. Guido Boggiani conta que em uma noite de frio, na aldeia, durante sua permanência, viu um senhor Kadiwéu procurar uma manta que já estava sendo usada por um escravo Chamacoco. Ao ver que o escravo tinha a manta, deu meia volta e não disse nada além de ter aguentado o frio. Os escravos era usados na agricultura – que era a parte mais sedentária da vida.

Não demorou e as duas potências europeias queriam derrotar os Kadiwéus ou, caso fosse impossível, tê-los como aliados. No caso dos Kadiwéus, Portugal venceu apesar do grande número de portugueses mortos durante os inúmeros encontros desastrosos.
O tenente Francisco Rodrigues, segundo comandante do Forte Coimbra e futuro fundador do Forte de Miranda**, escreveu: “... avaliam-se os portugueses mortos por eles em mais de 4.000”.

Tudo isso foi no passado. Há muito tempo. Hoje os Kadiwéus já não matam ninguém. O Forte Coimbra já não é mais um forte no sentido de estar ali para disparar tiros em navios estrangeiros. Os Kadiweús criam gado. Possuem Toyotas Bandeirantes e antenas parabólicas. Tudo mudou. Muitas das tribos mencionadas por Boggiani não existem mais. Sumiram. Eles ainda pintam. Mas ainda fazem todas aquelas obras que Boggiani narra e que ainda são guardadas no Museu de Assunção? Ou como foram mostradas no auditório do Banco do Brasil em Campo Grande? Tudo mudou menos a serra – que pode estar mais devastada, ter mais crateras feitas por maquinas ou estar pelada pela ação de agricultores. Como estarão os Kadiwéus hoje?

O vento da manhã é fresco e reconfortante. Aqui em cima é um bom local para meditar. Penso nos Kadiweus e só há uma maneira de descobrir como estão hoje. Ainda existe o Nalique? E Etókija? Ainda pintam os rostos com aquelas figuras geométricas complicadas? Utilizam o urucum ou o jenipapo como fonte de tinta? Ainda raspam todos os pelos do corpo inclusive as sobrancelhas, as pestanas e os cílios? Disse Boggiani que eles lhe contaram que raspavam pestanas e cílios por dois motivos: melhorava visão. E, segundo por que não eram cavalos para ter pelos longos e nem eram emas para terem longos cílios. Para descobrir estes e ouros detalhes voltarei um dia, e não muito distante. Trarei livros e fotos dos Kadiwéus vistos por Boggiani – tentarei fazê-los falar sobre eles mesmos. ***
Não é para o turismo. Incluir aldeias indígenas em roteiros turísticos é contra a lei. Pelo menos neste sentido a FUNAI está certa. Do jeito que o turismo é feito, só posso pensar na catástrofe. Grupos de “turistas apressados” olhando e xingando os índios, dando palpites e fazendo comentários idiotas. Não é um encontro de culturas. É uma colisão cultural.

Escutei que recentemente uma equipe da televisão coreana queria fazer uma vista para filmagem na Grande Planície. A ideia era filmar os Kadiwéus. A FUNAI dificultou. Exigiu muitas coisas – entre elas um motor de popa e uma contribuição em dinheiro. A Agência de Turismo que organizava a viagem não gostou. E eu me perguntei: para que um canal de televisão coreano quer filmar os Kadiwéus? Já imaginou o desencontro? O canal não quer ver os índios vivendo como estão. Querem vê-los pelados, pintados. Presenciei certa vez um maquiador italiano pintando uma índia na Amazônia segundo o que ele achava que uma índia daquela tribo, deveria parecer quando pintada. A cor desses índios era o vermelho. Mas o maquiador não aceitou. No filme eles apareceram pintados de preto com amarelo, com pontos brancos e alguns verdes. Foi revoltante. Pobres telespectadores! Esta cena aconteceu na Amazônia Colombiana, na redondeza de Letícia e os povos em questão eram os Yáguas.

Desço do topo da serra com tudo decidido. Farei duas expedições à terra dos Kadiwéus. Uma de bicicleta retomando o caminho a partir daqui, da Morraria do Sul. Outra de caiaque partindo de Forte Olimpo, Paraguai até a desembocadura do rio Nabileque. O plano é, a partir daí, refazer o trajeto de Guido Boggiani. Desta vez, o trecho terrestre será feito em lombo de boi. Se houver algum boi que me permita montar nele.



Notas:
*Jose Sanchez Labrador, jesuíta espanhol autor do livro – El Paraguay Católico, fundou uma missão na boca do rio Ipané

** O Forte de Miranda é um assunto que merece atenção. Provavelmente construído em material não durável, desapareceu sem deixar qualquer pista. Embora se fale muito dele em círculos do eixo Miranda – Aquidauana. A origem da cidade de Miranda vem dele.


*** Não cortei esta última parte para não censurar a mim mesmo. Isso foi algo que disse há quase 15 anos. Voltarei à Morraria para ver como está. Mas para apreciar e desfrutar o que há. Viver e valorizar o dia, o momento!

De bicicleta à Morraria do Sul (III) Os Cadivéus ou Kadiwéus (I)

Estava confirmada minha origem terrestre e aparentemente inofensiva.

– “O hotel está fechado, mas eu sou hóspede lá e você pode dormir na cama desocupada. Amanhã, você acerta com Sinésio”! – sugeriu resolvendo o problema um dos senhores do bar. Ele mora no distrito há mais de 30 anos. Conversamos algum tempo. Eu sentado em uma das quatro camas da Pensão do Senhor Sinésio que também é bar, restaurante, mercearia e panificadora. O pão é feito à moda antiga num forno de barro no quintal.
Pela manhã não havia disposição de voltar de bicicleta. Todos os músculos doíam. O nariz se deleitava em ingerir aquele ar puro livre de poluição e partículas irritantes à minha sinusite. O sol esquentava pouco a pouco. Mas era acompanhado por uma brisa acolhedora. Valeeu a pena ter vindo. O pessoal da pensão se interessa pela minha estória. Depois do café da manhã servido numa área coberta na parte de traz da casa foi hora de explorar a região. Começando pelo jardim da esposa do senhor Sinésio. Hortênsias, outras flores para mim desconhecidas e uns hibiscus híbridos com uma cor de vinho misturado com amarelo. O filho da casa, Ricardo – será mesmo Ricardo? Me acompanhou até o topo da Morraria. A visão é grande, imensa, inesperada. Lá em baixo uma vasta extensão plana que se perde no horizonte em direção ao rio Paraguai, ao país do mesmo nome, ao Chaco, ao Gran Chaco no Paraguai e na Bolívia. É possível ver centenas de quilômetros de uma só vez. Muita coisa aconteceu lá em baixo.

Hoje a terra lá em baixo é uma reserva indigena. São 538 mil hectares de terra pertencentes ao Kadiweus, ou Cadivéus – também conhecidos como guaicurus e até por mbayá. Na toponímia popular local, o grande espaço é chamado de Campo dos Índios. É um daqueles lugares que aceitam nomes mágicos, na fronteira do místico, do poético, do sonho. Para mim, o nome apropriado seria Campos do senhor – Fields of the Lord - como no filme. A maior parte da área que se vê desde a montanha pertence ao Município de Porto Murtinho. A área do Pantanal que se encontra entre a Serra e o Rio é conhecida como Nabileque. É lá onde se encontra o Forte Coimbra construído pelos portugueses para defender a área dos espanhóis.

– “Quatro dias de cavalo você chega ao rio Paraguai” – disse o filo de Seu Sinésio. Em épocas boas do ano, ir lá só de Toyota Bandeirante 4X4. “Na cheia é melhor esquecer – nada vai lá” completou o rapaz.

Veio à minha mente um nome: Guido Boggiani, um italiano. Há 104 anos, Boggiani percorrera a região do Nabileque. Partiu de Puerto Pacheco, Paraguai, à pé até o Forte Olimpo também Paraguai. Lá, ele seus ajudantes embarcaram em alguns “catchivéus” (Canoas) e remaram até a Boca do Rio Nabileque. Subiram o rio até um acampamento Kadiweu. De lá, conta Giovanni em livro deixado escrito, embarcou numa viagem a lombo de boi até a capital do Nabileque – segundo ele – chamada Nalique. Onde ficará hoje a Nalique?

O turista apressado hodierno não tem tempo nem de imaginar o que aconteceu lá em baixo. Muita gente morreu. Espanhóis, kadiwéus, portugueses e outros povos indígenas ou filhos da terra. Nos três meses em que Boggiani passou com os Kadiwéus, ele produziu os documentos mais valiosos sobre aqueles habitantes do Pantanal brasileiro e do Chaco paraguaio-boliviano. O amor dele pela descrição da fauna, flora e da paisagem – essa que se vê daqui de cima – é óbvio no texto. Ele se impressiona – como hoje eu também – com a cor azulada da Serra da Bodoquena vista à distância.


Guido Boggiani
Graças a Boggiani (foto) ainda temos hoje idéia das várias manifestações culturais artísticas dos Kadiweus praticadas naqueles dias e reproduzidas por Boggiani. Eram pequenas esculturas que ornam objetos pessoais como cachimbos, as espátulas de madeiras usadas para tecer, pequenos pentes de chifre, decoração de pequenas contas coloridas utilizadas em cintos e nos sacos de provisões. Ele narra a técnica de tecelagem e impressão utilizando um barbante. Graças a ele temos notícias da existência de marcas de posses que os Kadiweus imprimiam sobre toda espécie de material desde objetos, ao gado, aos cavalos e até as mulheres, sobre os postes totêmicos e em bandeiras com a insígnia de caciques.

O propósito da missão de Boggiani entre os Kadiweus era comercial. Ele estava lá para comprar coros de cervos (veados). A moeda de pagamento – à moda de outros contatos entre europeus e índios – era a pinga, a rapadura e os tecidos que ele portava em sua carga.

Para quem quer comprar coro de cervos, ele escolheu uma boa hora e uma boa região. A região que gosto de chamar de “Campos do Senhor” era chamada na época de “ região da grande caçada ao cervo ou segundo o mapa de Giovanni: “reggione delle grande caccie al cervo”. Uma vez por ano, os índios da Planície do Nabileque partiam na Grande Caçada – todos participavam, crianças, famílias e idosos. Como comerciante ele se deu mal. O resultado da expedição em liras italianas não foi muito bom. Ao sair do Nalique, do Nabileque, das “Montanhas de Miranda”, ele se considerou bem pago com a experiência cultural que leva, com as aquarelas pintadas, com desenhos feitos à pressa e com o seu diário. Seus escritos são hoje parte do acervo literário e cultural dos Kadiwéus ou guaicurús ou ainda dos “Índios Cavaleiros” - como também são chamados até hoje.

Para mi tudo isso aqui é uma Grande Fronteira. Assim batizei a excursão número dois de minha (ex) futura firma. Uma fronteira entre Cerrado e Mata Atlântica, Serra da Bodoquena e Pantanal. Fronteira no tempo. Passado e presente diante de mim. Fronteira de decisões políticas – IBAMA, FUNAI, INCRA, prefeituras e municípios. De braços abertos, como se fosse um grande urubu, o vento vindo de frente e subindo a montanha, parecia estar me elevando, é uma térmica ascendente e boa.

– Vai voar? Me assusta o Ricardo perguntando.
– Um dia! E você vem comigo
– Aqui deve ser bom para voar de asa delta – sugere.
– Não asa delta é para loucos. Aqui é um bom lugar para voar de para pente.

Continua...
Veja esta matéria no Monde diplomatique sobre o Nalique