segunda-feira, 23 de agosto de 2010

De bicicleta à Morraria do Sul (III) Os Cadivéus ou Kadiwéus (I)

Estava confirmada minha origem terrestre e aparentemente inofensiva.

– “O hotel está fechado, mas eu sou hóspede lá e você pode dormir na cama desocupada. Amanhã, você acerta com Sinésio”! – sugeriu resolvendo o problema um dos senhores do bar. Ele mora no distrito há mais de 30 anos. Conversamos algum tempo. Eu sentado em uma das quatro camas da Pensão do Senhor Sinésio que também é bar, restaurante, mercearia e panificadora. O pão é feito à moda antiga num forno de barro no quintal.
Pela manhã não havia disposição de voltar de bicicleta. Todos os músculos doíam. O nariz se deleitava em ingerir aquele ar puro livre de poluição e partículas irritantes à minha sinusite. O sol esquentava pouco a pouco. Mas era acompanhado por uma brisa acolhedora. Valeeu a pena ter vindo. O pessoal da pensão se interessa pela minha estória. Depois do café da manhã servido numa área coberta na parte de traz da casa foi hora de explorar a região. Começando pelo jardim da esposa do senhor Sinésio. Hortênsias, outras flores para mim desconhecidas e uns hibiscus híbridos com uma cor de vinho misturado com amarelo. O filho da casa, Ricardo – será mesmo Ricardo? Me acompanhou até o topo da Morraria. A visão é grande, imensa, inesperada. Lá em baixo uma vasta extensão plana que se perde no horizonte em direção ao rio Paraguai, ao país do mesmo nome, ao Chaco, ao Gran Chaco no Paraguai e na Bolívia. É possível ver centenas de quilômetros de uma só vez. Muita coisa aconteceu lá em baixo.

Hoje a terra lá em baixo é uma reserva indigena. São 538 mil hectares de terra pertencentes ao Kadiweus, ou Cadivéus – também conhecidos como guaicurus e até por mbayá. Na toponímia popular local, o grande espaço é chamado de Campo dos Índios. É um daqueles lugares que aceitam nomes mágicos, na fronteira do místico, do poético, do sonho. Para mim, o nome apropriado seria Campos do senhor – Fields of the Lord - como no filme. A maior parte da área que se vê desde a montanha pertence ao Município de Porto Murtinho. A área do Pantanal que se encontra entre a Serra e o Rio é conhecida como Nabileque. É lá onde se encontra o Forte Coimbra construído pelos portugueses para defender a área dos espanhóis.

– “Quatro dias de cavalo você chega ao rio Paraguai” – disse o filo de Seu Sinésio. Em épocas boas do ano, ir lá só de Toyota Bandeirante 4X4. “Na cheia é melhor esquecer – nada vai lá” completou o rapaz.

Veio à minha mente um nome: Guido Boggiani, um italiano. Há 104 anos, Boggiani percorrera a região do Nabileque. Partiu de Puerto Pacheco, Paraguai, à pé até o Forte Olimpo também Paraguai. Lá, ele seus ajudantes embarcaram em alguns “catchivéus” (Canoas) e remaram até a Boca do Rio Nabileque. Subiram o rio até um acampamento Kadiweu. De lá, conta Giovanni em livro deixado escrito, embarcou numa viagem a lombo de boi até a capital do Nabileque – segundo ele – chamada Nalique. Onde ficará hoje a Nalique?

O turista apressado hodierno não tem tempo nem de imaginar o que aconteceu lá em baixo. Muita gente morreu. Espanhóis, kadiwéus, portugueses e outros povos indígenas ou filhos da terra. Nos três meses em que Boggiani passou com os Kadiwéus, ele produziu os documentos mais valiosos sobre aqueles habitantes do Pantanal brasileiro e do Chaco paraguaio-boliviano. O amor dele pela descrição da fauna, flora e da paisagem – essa que se vê daqui de cima – é óbvio no texto. Ele se impressiona – como hoje eu também – com a cor azulada da Serra da Bodoquena vista à distância.


Guido Boggiani
Graças a Boggiani (foto) ainda temos hoje idéia das várias manifestações culturais artísticas dos Kadiweus praticadas naqueles dias e reproduzidas por Boggiani. Eram pequenas esculturas que ornam objetos pessoais como cachimbos, as espátulas de madeiras usadas para tecer, pequenos pentes de chifre, decoração de pequenas contas coloridas utilizadas em cintos e nos sacos de provisões. Ele narra a técnica de tecelagem e impressão utilizando um barbante. Graças a ele temos notícias da existência de marcas de posses que os Kadiweus imprimiam sobre toda espécie de material desde objetos, ao gado, aos cavalos e até as mulheres, sobre os postes totêmicos e em bandeiras com a insígnia de caciques.

O propósito da missão de Boggiani entre os Kadiweus era comercial. Ele estava lá para comprar coros de cervos (veados). A moeda de pagamento – à moda de outros contatos entre europeus e índios – era a pinga, a rapadura e os tecidos que ele portava em sua carga.

Para quem quer comprar coro de cervos, ele escolheu uma boa hora e uma boa região. A região que gosto de chamar de “Campos do Senhor” era chamada na época de “ região da grande caçada ao cervo ou segundo o mapa de Giovanni: “reggione delle grande caccie al cervo”. Uma vez por ano, os índios da Planície do Nabileque partiam na Grande Caçada – todos participavam, crianças, famílias e idosos. Como comerciante ele se deu mal. O resultado da expedição em liras italianas não foi muito bom. Ao sair do Nalique, do Nabileque, das “Montanhas de Miranda”, ele se considerou bem pago com a experiência cultural que leva, com as aquarelas pintadas, com desenhos feitos à pressa e com o seu diário. Seus escritos são hoje parte do acervo literário e cultural dos Kadiwéus ou guaicurús ou ainda dos “Índios Cavaleiros” - como também são chamados até hoje.

Para mi tudo isso aqui é uma Grande Fronteira. Assim batizei a excursão número dois de minha (ex) futura firma. Uma fronteira entre Cerrado e Mata Atlântica, Serra da Bodoquena e Pantanal. Fronteira no tempo. Passado e presente diante de mim. Fronteira de decisões políticas – IBAMA, FUNAI, INCRA, prefeituras e municípios. De braços abertos, como se fosse um grande urubu, o vento vindo de frente e subindo a montanha, parecia estar me elevando, é uma térmica ascendente e boa.

– Vai voar? Me assusta o Ricardo perguntando.
– Um dia! E você vem comigo
– Aqui deve ser bom para voar de asa delta – sugere.
– Não asa delta é para loucos. Aqui é um bom lugar para voar de para pente.

Continua...
Veja esta matéria no Monde diplomatique sobre o Nalique

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