domingo, 24 de maio de 2009

De bicicleta à Morraria do Sul II

A estradinha começou a subir. Engato marcha mais leve e a bicicleta responde bem. Começo a subir. A estradinha parece uma fileira de cabelo em cabeça de punk. Aqui começam as aflorações rochosas que meu amigo geógrafo falou. A vegetação na montanha é Mata Atlântica. Me emociono! Cada centímetro do Planeta me é interessante, cativante. Paro a bicicleta para respirar e a beleza e dar graças a Natureza pelo privilégio de estar aqui. Entro um pouco na vegetação. Que cheiro gostoso! Há muitos pássaros. Um casal de araras vermelhas voam a uns 100 metros de altura. Vão cruzando ao longo do vale. Pelo binóculos as observo. Enquanto voam não param de gritar. Se elas são iguais aos casais humanos devem estar brigando.

“Reduza a velocidade. Longo em trecho em declive”, dizia uma placa de trânsito. Placa de trânsito, aqui? É, aqui, mesmo.


Ponha declive nisso e acrescente cascalho, a Cassola com freio mais ou menos o resultado é igual a suicídio. Paro. Desço da Cassola e continuo a pé, os dois. Antes de chegar no fim do declive uma capelinha construída na rocha e várias cruzes registram, o local de um acidente. Descubro que foi feio. Uma Brasília verde-abacate passa por mim jogando poeira e pedra. Posso ser maldoso, mas aquela Brasília não tem cara de ter freio não.

A visão que se descortina daqui é uma surpresa. Um vale! À frente e à esquerda, está a entrada para uma fazenda bem cuidada. Montserrat, é o nome.

- É o nome da montanha onde parou a Arca de Noé, me informou um senhor que passou por aqui e com quem conversei rapidamente.

- Que arca? Aqui tem arca?
- A Arca de Noé, me disse para refrescar a minha memória. Se a missão de espalhar a Bíblia por todo o mundo é sinal do fim dele, então o fim já deve estar chegando. Não fiz nada para corrigir o erro do rapaz. Pra que dizer a ele que a Montanha onde Noé estacionou a Arca se chama Ararat? Deixa assim, Montserrat é mais latino.

No vale a estrada é reta e sem dificuldades. Por que não? Decido ir em frente [até Morraria]. O Vale é na realidade território do rio Salobra. O rio que coleta toda a água que deve cair das inúmeras nascentes dessa parte da Serra. Que o Salobra é o manda-chuva aqui pode ser deduzido pela quantidade de pontes de madeira que atravessam espaços hoje secos. Devem ser locais para o escoamento da água das várzeas do Salobra. Finalmente aparece o Salobra de verdade. Deve estar 13 quilômetros estrada adentro. Na beira do rio, há um monte de pescadores. O rio é azulado e profundo. Queria que os caiaques estivessem aqui. Seria lindo explorar o rio de caiaque. Que rio, o Salobra! Mais pra cima ele é azul piscina e transparente. Aqui é azulado mais sujo – quer dizer hoje. Lá pra baixo antes de desembocar no rio Miranda ele é igual ao rio Negro. É negro com visibilidade boa.

Misterioso esse Salobra. Em algumas épocas aqui se vê os pássaros do Pantanal como o Cabeça-seca, maguari, biguá. Ás vezes até tuiuiú. Isso é uma fronteira natural. Eu adoro fronteiras.

Uma boiada com pelo menos 500 cabeças, vem em minha direção. E agora? Que é que eu faço? Penso em voltar pedalando desesperadamente na frente do gado. Seria uma palhaçada. E se os animais se decidissem me acompanhar pensando, talvez, que eu fosse um vaqueiro ciclístico? Pensei melhor pulei a cerca e me escondi. Quer dizer nos escondemos. a Cassola e eu. Tomei providências para deixar-me ser visto pelos membros da comitiva – se não, eu poderia levar um tiro. Eu tinha muito medo de vaca. De touro, pior ainda.

A estrada reta e plana continuava como se não tivesse a intenção de ter fim. Já é tarde ou pelo menos parece. O céu está nublado. Quanto mais se chega perto do outro lado da cabeceira do vale, mais nublado fica.

Que horas são? É só curiosidade, para que saber de horas em uma aventura natural? O vale começa a estreitar-se. É lindo. A região de influência do Salobra começa a ficar para trás. Dos dois lados há montanhas cobertas de vegetação. Na rocha, nos espaços onde a vegetação não consegue se firmar, se vê buracos de vários formatos. Devem ser grutas. O pensamento me emociona.... Penso em fazer um curso de rapel para explorar essas escarpas. O mistério da montanha aumenta.


Como será a morraria? – me pergunto. Os flashes que me vêm à cabeça são imagens do Tibete, Katmandú. Parece que as nuvens negras estão sentadas ou apoiadas no topo das montanhas. Um riozinho desce o vale que agora fica mais estreito. Deve ser o rio do Engano. Ele ganhou esse nome porque ele engana. Apresenta-se sempre como pequeno e comportado. Mas quando o tempo desaba lá em cima, o rio transborda rápido e pega de surpresa a quem quer que tenha decidido acampar ao lado de suas calmas margens.

A estrada começa a subir. Cada vez mais eu e a bicicleta intercambiávamos funções. Eu levo, ela me leva. A subida fica mais séria. Há um desvio para à direita que leva à sede da Fazenda Pedra Branca. Penso rápido e entro nesse desvio. Os primeiros mil metros é banguela livre. Agora é só subida. Parece não ter fim essa subida. A estrada é estreita e parece não ter tanto movimento. Nos dois lados dela há cercas. No lado direito, vejo um rebanho de gado muito grande. Quantos são? Não sei. São jovens, parecem bezerros recém desmamados. Eles são curiosos. Todos param de comer e estão me olhando. Afinal tudo aqui é curioso. Passei por eles. Deve haver um milhão de olhinhos redondos, pretos, me olhando. Sinto a energia que emana dos animais – sinto o calor da energia bovina.

Eles começam a corre no meu lado. O barulho dos cascos golpeando o chão, o chafurdar da vegetação seca junto com o barulho de milhões de grilos e outros insetos decolando é inesquecível. Temo que haja um buraco na cerca e que de repente eles invadam a estrada e me imprensem, me matem pisoteado. Como mantenho os olhos grudados na lateral, na cerca, não vejo uma subida difícil à frente. Por isso, não consigo engatar uma marcha mais leve. A bicicleta morre no meio da ladeira e começa a descer de ré e em câmara lenta. Para o meu terror vejo que todos os animais estão parando ao meu lado enquanto eu luto para tomar pé. É como se eu estivesse me afogando no seco. Não consegui e a queda foi inevitável. Aterrissei suavemente no traseiro e em esforcei para não rolar ladeira abaixo pela Cassola no final do tombo. Fiquei muito nervoso e me preparava para fazer um discurso mental sobre a estupidez da pecuária, sobre o fato do planeta estar se transformando em um ‘planeta do gado’ em vias de ver a decretação da existência de uma explosão “vacográfica” em lugares como o Pantanal, a Savana Venezuelana outras tantas. Pensei na estupidez da criação de gado na modalidade conhecida como “extensiva” que necessita d tanta terra para uma vaca e nos baixos preços do produto. Aí aconteceu.

Encaro a multidão bovina na minha frente e me preparo para comunicar-lhe que eu as acho estúpidas e que os hindus são mais estúpidos ainda por não fazerem churrascos de vaca quando peã primeira vez na vida, descobri, ali, com são bonitinhos esses bezerros, esses garrotes, as vacas da variedade Nelore, brancas com aqueles olhinhos negros, brilhantes, curiosos e carinhosos. Não consegui segurar a gargalhada que aquela situação me provocou. Decidi conversar com meus novos amigos. Eu disse: vocês devem estar sorrindo, hein! Falem a verdade, estão se divertindo. Foi tão bom o meu encontro com meus irmãos contemporâneos bovinos que comecei a gostar de boi, vaca, bezerro e boiada no Pantanal. Creio ter ficado no chão por mais de 10 minutos, curtindo o momento, olhando os bezerros, conversando com eles, meu olho nos ‘zoinhos’ pretinhos deles.

Cheguei na sede da Fazenda Pedra Branca já entrada a noite, para meu desespero. Eu só pensava em pouso, comida, café, suco. Aparecer como se tivesse caído do céu em uma fazenda no meio da Serra da Bodoquena não é uma boa idéia. Você pode ser tudo: ladrão, criminoso, tarado, sequestrador; pode ser extraterrestre, espírito ruim, alma penada, tudo. Por isso eu já sabia que não iria ficar hospedado na ou seria atendido na fazenda. Dito e feito. Depois de conversar um pouco com os moradores e me reabastecer de água, parti para a estrada, fazendo todo caminho de volta, até encontrar a estrada para a Morraria. Tudo o que eu pensava era encontrar gente de bem, achar uma ao comida, uma cerveja de qualquer marca e uma cama. O arrependimento e a auto-recriminação de ter entrado nessa situação eram inevitáveis.

- Nunca mais sairei assim sem comida, barraca, liquido, me dizia. O que eu estou fazendo, logo eu que tenho um bom emprego me esperando no Paraná?

Agora já é noite de verdade. Milagrosamente as pesadas nuvens que taparam o sol durante toda a tarde, sumiram. No lugar das nuvens aparece uma bela lua cheia que ilumina o meu caminho. Sempre rezei que alguém iluminasse o meu caminho, mas nunca esperei que fosse desse jeito. Porém, nem tudo é perfeito. Acho que 99% das nuvens foram embora. O 1% que restou decidiu se entrepor entre mim e a lua exatamente na curva mais perigosa de descida. Na penumbra, vejo um vulto gigantesco no chão. Uma vaca! Freio desesperadamente e capoto. Vôo alguns metros e aterrisso de queixo no chão. A clássica aterrissagem malamanhada. Eu já vi pássaro pousar assim. Não sou p primeiro. Tive a impressão de sentir um estalo no pescoço – tak! Fiquei quieto.

Desencarnei, pensei. Morri na Serra da Bodoquena. Olho de lado. Primeiro à esquerda e logo à direita para se ver se vejo algum irmão para me receber.

- Bem-vindo irmão, acabaram seu dias de sufoco!
Nada! Ninguém. Decido, então, bater no chão. Pensei que se eu sentisse a pancada, eu ainda estaria no corpo. Estaria vivo! Assim fiz. Bati no chão segundo minha sábia decisão e senti a pancada. Daí, se eu não conseguisse mexer a cabeça teria quebrado o pescoço. Estaria paralítico na Serra da Bodoquena. Por milagre me levantei e decido descer a serra empurrando Cassola que milagrosamente não havia sofrido nada. Aprendi que não dava para confiar em ninguém. Nem na lua. Encontrei a bicicleta. Ela estava exatamente onde eu jurei ter visto uma vaca. Ela evaporou, se é que houve uma vaca ali. Terrorismo bovino!

Já passavam das onze horas da noite quando, de longe, avistei as luzes da Morraria do Sul. Veio a pressa de chegar. A subida continuava. Era difícil ver a estrada porque o brilho das luzes da iluminação pública, lá ao longe, encadeavam os meus olhos. É a poluição luminosa – um fenômeno que ainda não chama a atenção no Brasil. Tanto prova isso, que o adjetivo “luminoso” não é do entendimento comum. Talvez por isso conceito não seja claro como em poluição sonora, poluição visual e até poluição mental.

Meu último desastre por pouco não aconteceu na entrada do Distrito da Morraria do Sul. Há uma curva acentuada à direita para entrar no povoado. Há também duas pontes. Uma nova e usada atualmente e outra abandonada – só o esqueleto. A curva leva à segunda. E foi exatamente a que escolhi. Sorte que a vi a tempo. Um buraco imenso onde lá o fundo passa um rio seco, me esperava. Ufa!

Entrei no distrito da Morraria dependência administrativa de Bodoquena. Tudo estava fechado. O único lugar abeto era um barzinho. Havia quatro clientes lá. Apareci como se tivesse caído do céu. A turma se assustou com a minha aparição. Mostrei a bicicleta para provar que meu meio de transporte era legal. Queria evitar que eles pensassem em aparição extraterrestre ou coisa parecida. Pedi uma cerveja. Comida não tinha. Só amanhã. Continuo tentado quebrar o gelo.

Por sorte chega um táxi. Ele trazia o vereador do que representava o distrito em Bodoquena e que acabava de fazer uma caridade em benefício de uma eleitora. O vereador aproveitou para tomar uma gelada no barzinho. Empolgado com o surgimento de mais um visitante, reconheci o taxista. Aproveitei e anunciei: esse taxista me viu chegar em Bodoquena hoje à tarde. O taxista olha na minha direção e escuto:

Ué, não é que ele veio mesmo de bicicleta! Se admirou. Era o Negão lá de Bodoquena. Minha situação ficou confortável. Estava confirmada minha origem terrestre e aparentemente inofensiva. Conversamos todos até a partida do táxi do Negão e seu passageiro.

Continua

Nenhum comentário: